“A gente sabe que casa para todo mundo
o governo não tem condição de dar. Desse então
o terreno e a gente construía a casa”
Tanice Rosemere dos Santos, 44 anos, salgadeira, vivia na rua 2,
bloco C, casa 41 de Pinheirinho desde 2003 e hoje mora no Rio Comprido
o governo não tem condição de dar. Desse então
o terreno e a gente construía a casa”
Tanice Rosemere dos Santos, 44 anos, salgadeira, vivia na rua 2,
bloco C, casa 41 de Pinheirinho desde 2003 e hoje mora no Rio Comprido
Para entrar na casa de Tanice Rosemere dos Santos, 44 anos, no bairro
de Rio Comprido, periferia de São José dos Campos, interior de São
Paulo, não é preciso bater. No barracão onde ela mora com a filha
Isabelle, de 1 ano e 2 meses, uma colcha de xadrez
azul e verde faz as vezes de porta. Rompido o portão improvisado,
chega-se ao primeiro cômodo, um espaço de não mais de 10 m², misto de
sala e cozinha, com fogão antigo, botijão de gás, geladeira, máquina de
lavar quebrada, um sofá velho de dois lugares, uma
cadeira e uma televisão de 20 polegadas. Logo após há o banheiro e o
único quarto da casa, um ambiente escuro, sem janelas. A cama de casal
divide espaço com o berço de Isabelle e uma dúzia de caixas usadas como
armário, abrigando o que sobrou da residência
anterior, bem mais espaçosa, com dois quartos, sala, banheiro, cozinha e
quintal.
Não foi tempestade nem avalanche o que dizimou o lar de
Tanice. Ela era uma das cerca de seis mil pessoas que viviam na ocupação
de Pinheirinho, também em São José dos Campos,
e tiveram de abandonar suas casas às pressas no dia 22 de janeiro, um
domingo, durante o processo de reintegração de posse do terreno (leia
quadro acima) feito por dois mil homens armados da Polícia Militar. Três
dias depois da retirada, tratores da prefeitura
passaram pelo local e destruíram tudo. Desde as casas, incluindo parte
do que havia dentro delas, até as hortas caseiras dos moradores. Hoje a
área de 1,3 milhão de metros quadrados se resume a um monte de entulho e
as 1,7 mil famílias que viviam no local
não conseguiram, assim como Tanice, reconstruir suas vidas em uma
moradia digna.
A operação de retirada das famílias de Pinheirinho tal qual foi feita
tem sido muito criticada. “Há uma equipe de juristas trabalhando para
finalizar o texto da denúncia que será encaminhado à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos”, fala o defensor público
Jairo Salvador, que acompanha o caso. Quando a polícia bateu à porta de
Tanice, por exemplo, só houve tempo para ela pegar a pasta com
documentos, um punhado de roupas para Isabelle, o carrinho e a banheira
da bebê e a cachorra vira-lata Kelly. “Ainda levei
muito. Teve gente que não conseguiu tirar nem os documentos”, diz.
Desde então, ela iniciou uma romaria em busca de um novo lar. Já passou
por abrigo, cortiço e agora está em um barracão numa área desocupada
pela Defesa Civil em 2011, após um deslizamento.
Ali estão algumas das famílias de Pinheirinho, o que vem sendo
investigado pela Defensoria Pública. Há uma denúncia de que a própria
prefeitura teria levado cerca de 20 famílias para essa área de risco. O
poder público nega. Em meio à polêmica, resta a incerteza
para quem está lá, pois há uma liminar pedindo a reintegração do local.
RISCO
Sem ter para onde ir, vários ex-moradores de Pinheirinho estão em
área desapropriada pela Defesa Civil após deslizamento em 2011
Refazer a casa é um exercício diário de ignorar as perdas e lutar
para ter de volta o que foi perdido. Todos os meses, o boleto das
prestações a vencer lembra Tanice do guarda-roupas, da cômoda e da
máquina de lavar que ela havia acabado de comprar e ainda
lhe custam R$ 230 mensais. Ela já não tem mais nenhum dos bens, mas
deve ainda oito parcelas à loja. Além deles, se foram as duas batedeiras
profissionais, os bicos de confeitar, as formas, o liquidificador e os
vasilhames que usava para cozinhar. Tanice é
salgadeira e doceira profissional e vivia da renda dos seus quitutes.
Sem o equipamento, improvisa tecendo encomendas de crochê e com o
auxílio-moradia de R$ 500 – pago a 1.630 famílias de Pinheirinho, de
acordo com a Prefeitura.
Para trabalhar fora, precisaria
deixar Isabelle em uma creche, mas, mesmo com o papel assinado pela
assistente social, ela não consegue vaga. Desde que perdeu a casa,
Tanice gasta seus dias tentando resolver problemas. Do lar em
Pinheirinho, restou só um cartão com o número 633, etiqueta
dada pela polícia durante a desocupação e que lhe valeria o direito de
recuperar todos os bens que estavam dentro do imóvel, o que nunca
aconteceu. “Pus essa casa de pé com o dinheiro do meu trabalho. A gente
sabe que casa para todo mundo o governo não tem
condição de dar. Desse então o terreno e a gente construía.”
Não só bens materiais foram perdidos com a remoção. O convívio social
também foi reduzido a frangalhos. O êxodo forçado fez os moradores se
espalharem por mais de uma dezena de bairros de São José dos Campos.
“Quando falamos em direito à moradia, não estamos
dizendo apenas da casa. Ela é uma espécie de porta de entrada para os
outros direitos, como educação, saúde, trabalho, privacidade”, afirma
Raquel Rolnik, relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU)
para o direito à moradia adequada. Ouvir os
relatos dos retirados de Pinheirinho é atestar que nada disso foi
levado em conta durante a operação policial. Há 620 processos de
ex-moradores correndo na Justiça – reclamando desde a perda do
mobiliário, até a morte de animais de estimação e denúncias de
violência policial. “Eles não podiam ter feito a remoção de uma hora
para a outra”, critica Raquel, que, como relatora da ONU, enviou uma
carta ao governo brasileiro pedindo ao poder público federal que se
posicione sobre o assunto.
A história da família de Tanice ilustra bem o impacto da reintegração
de posse na vida dos ex-moradores. Enquanto viveu em Pinheirinho, ela e
a irmã Tânia Rosilene Martins, 48 anos, eram vizinhas. Agora cada uma
está em um canto da periferia de São José
dos Campos, distantes 20 quilômetros. “Ligo para a Tanice todos os
dias”, diz Tânia. Além da irmã, Tânia teve de se separar da filha do
meio, Gisele, 26 anos, grávida e que foi morar com a avó paterna. Restou
só a filha mais nova, Tainara, de 11 anos. As duas
vivem em uma espécie de cortiço onde pagam R$ 400 de aluguel mais R$ 40
por pessoa para custear água e luz. O valor dá direito a menos de 30 m²
de um espaço precário. “Tem goteiras na sala e no quarto. Quando a
gente liga o chuveiro, cai a luz”, afirma Tânia.
A grande alegria de Tânia atualmente é ter novamente Elisângela Silva,
39 anos, morando ao seu lado. “Pulei quando a vi chegando aqui”, diz,
relembrando o dia em que se deparou com a ex-vizinha de porta subindo as
escadas do cortiço. A mesma reação teve Iane,
filha mais velha de Elisângela e amiga de Tainara. “Estava com medo de
chegar aqui e não ter ninguém da minha idade”, conta ela, que tem 11
anos, assim como a filha de Tânia. Foi uma dor a menos reencontrar a
amiga de Pinheirinho. “Na escola nova já tinha
sido muito difícil fazer amizades”, diz a menina, que teve de ser
transferida. Iane foi uma das crianças que presenciaram a desocupação.
Ela se lembra do policial mandando a família sair e da angústia de não
conseguir fazer caber seus pertences na sacolinha
em que pôs tudo o que pôde nos 15 minutos de prazo para desocupar a
casa onde viveu por cinco anos. Sobre as coisas que perdeu e sente
falta, é singela: sente saudade das amigas que nunca mais viu e queria
de volta o diploma de participação nas oficinas do
Proerd, programa de resistência às drogas da Polícia Militar.
Mesmo após quatro meses da retirada das famílias de Pinheirinho,
muitos moradores ainda batalham para ter de volta os bens recolhidos
pela prefeitura antes da passagem dos tratores. Uma delas é a costureira
Sônia Maria da Silva, 43 anos. Depois da saída
forçada, ela voltou por três dias consecutivos à área para tentar pegar
sua mobília. Não conseguiu e recebeu a informação de que suas coisas
seriam enviadas para um galpão, à beira da rodovia Presidente Dutra.
Desde então, realiza com frequência um cansativo
périplo até o local na esperança de reaver seus bens. Nas mãos, leva
sempre o cartão em que se vê impresso “718”, número colocado pelos
policias na sua casa. “Já paguei carreto duas vezes para pegar minhas
coisas, R$ 100 cada, e até agora não consegui tirar
nada”, afirma Sônia, que desistiu de chamar o caminhão e agora vai
sozinha ao galpão. Lá, a cena se repete semanalmente: ninguém vem
atendê-la. Enquanto não consegue refazer o lar, a costureira deixa a
filha Giselia, 8 anos, e a sobrinha Raíssa, 12, com a
irmã, em São Paulo. “Minha filha chora até hoje e pede para voltar. Na
cabeça dela, a casa ainda existe.” Mas Pinheirinho não passa de um
retrato desbotado estampado nas camisas de protesto de seus
ex-moradores.
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