O armazém na esquina das ruas Emilio Ribas e Campos Melo, é uma carcaça sem vida. Escurecido pela corrosão do tempo e pela omissão do homem, o prédio em ruínas contrasta com duas árvores que insistem em colorir aquele pedaço da Vila Mathias, em Santos.
O ipê e a amoreira estão a uma distância de oito passos uma da outra. Ambas as plantas têm motivos para estar ali. Não ocupam parte da calçada ao acaso. Entre elas, um pequeno canteiro, o novato plantado há 15 dias. As duas árvores têm nome próprio, além daqueles que servem aos biólogos para identificá-las como espécie. O ipê se chama Ícaro. A amoreira, Murilo. As árvores materializam e cristalizam a memória dos dois meninos atropelados em 8 de agosto de 2005, exatamente naquela esquina.
Um ano depois da morte dos garotos, os familiares discutiam a hipótese de realizar missa em homenagem aos dois. A guarda municipal Sandra Maria de Miranda Costa, tia de Murilo, se recusou a cumprir o protocolo. Sugeriu que fosse organizada uma rua de lazer para as crianças do bairro, o que incluiria o plantio de duas árvores para simbolizar Ícaro, de 10 anos, e Murilo, de oito. “Como eles não cresceram, que as árvores cresçam por eles!”, foi o argumento definitivo de Sandra.
As duas árvores são a cereja do bolo de uma festa que acontece há seis anos na rua Emilio Ribas, entre a Campos Melo e a Silva Jardim. Em um domingo de agosto, a comunidade se reúne durante o dia todo e promove uma Rua de Cidadania. São realizados cortes de cabelo, atendimentos jurídicos e odontológicos, brincadeiras, shows, distribuição de alimentos, entre outras atividades e serviços voluntários. O custo é fatiado entre empresas do bairro, Prefeitura e doações de pessoas físicas.
A organização começa dois meses antes, com a arrecadação de fundos e o planejamento das atividades. Panfletos são distribuídos nas escolas da rede pública e reuniões são realizadas com os moradores.
A tia de Murilo explica que a rua de lazer, posteriormente ampliada para Rua de Cidadania, tem o objetivo de tirar o estigma daquele canto do bairro. “Ah, ali morreram os meninos, muitos dizem. Eles morreram brincando. Então, vamos brincar por eles.” Para ela, o ar de festividade foi a maneira encontrada para minimizar a própria dor e saudade do sobrinho. “Bloquear não conseguimos. Através deles (os meninos), as crianças daqui terão lazer.”
Um dos envolvidos é o grupo Doutores do Riso, uma das organizações que realizam trabalhos de humanização em hospitais. Voluntária desde 1980, Idalina Galdino Xavier, a Doutora Alegria, participa do evento há três anos. “É muito triste ter que fazer isso pela morte dos meninos. O sofrimento é eterno. Mas, por outro lado, as crianças precisam de espaço.”
O acidenteÍcaro e Murilo brincavam de esconde-esconde com outros meninos na rua Emílio Ribas. Os dois resolveram se esconder debaixo de um caminhão com contêiner, que estava estacionado na esquina com a rua Campos Melo. Eram duas horas da tarde e o motorista almoçava em um boteco do outro lado da rua.
O motorista terminou a refeição e entrou no veículo. Segundo testemunhas, ele não viu os meninos e deu partida no caminhão. Uma moradora do local gritou para avisar o motorista que os dois estavam embaixo do veículo, mas não conseguiu evitar o atropelamento. Ambos morreram antes de dar entrada na Santa Casa de Santos.
BatismoAtualmente, a festa é organizada pela família de Murilo. Mais de uma dúzia de parentes se dividem na preparação e na execução das atividades. Os familiares de Ícaro participaram do primeiro ano. Depois, se mudaram para a Zona Noroeste e perderam contato com os antigos vizinhos. Este ano, Ícaro e Murilo foram batizados. Ou melhor, as duas árvores receberam, oficialmente, seus novos nomes. Duas placas foram colocadas nas floreiras que cercam o ipê e a amoreira para relembrar e informar, além dos limites do quarteirão, o que ainda representam as duas crianças para os moradores de um pedaço da Vila Mathias.
Bom dia, meu filho!
— Bom dia, meu filho! Marliane nunca tocou na árvore. Um dos irmãos, Regis, tem a responsabilidade de zelar pelas plantas. Quando conversou comigo, Marliane estava a dois metros da amoreira. Falava de costas para a árvore. Quando se virava para ela, engasgava, os olhos se enchiam de lágrimas. Marliane respirava fundo e buscava concentração para retomar a conversa.
A mãe de Murilo confessou que, no primeiro ano, não admirava a ideia de promover uma rua de lazer para relembrar a morte do filho. “Estava de luto. Fui convidada especial.” A partir de 2007, se envolveu diretamente com a organização do evento.
Murilo morreu numa segunda-feira. Marliane vendia passagens em frente à Santa de Casa de Santos. Conhecia muitos funcionários, que a deixavam tomar água e utilizar um dos banheiros do hospital. No momento do acidente, o movimento estava tranqüilo e ela havia engatado conversa com uma amiga. Ela se recorda de ter mencionado os filhos várias vezes até sentir uma dor no peito.
A sensação de mãe, que cientista algum consegue explicar, se transformou em preocupação. “Não deve ser nada”, pensou. Minutos depois, a ambulância que tentava salvar a vida do garoto de oito anos passou em frente ao ponto. Ela não prestou atenção, até porque havia se acostumado com a rotina das emergências no local. “Toda hora passa viatura por lá.”
Marliane só percebeu que havia algo diferente quando notou meia dúzia de funcionários olhando diretamente para ela. Murilo havia sido identificado. Nenhum deles tinha coragem de dar a notícia para a vendedora de passagens. Marliane só pensou em acidente com um dos três filhos quando avistou a cunhada saindo da Santa Casa. Hoje, a árvore é mais do que um símbolo. Para Marliane, a amoreira é Murilo. A amoreira é a projeção de como o filho dela estaria aos 14 anos. É quando ela olha para a árvore, soluça e diz: “ele cresceu, está grande, feliz e com vida.”
(MVB)
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